"Não basta chegar lá, entrar numa posição de confronto e se recusar. Não está sendo eficaz. Tem que ser pragmático. O reconhecimento inevitável do pragmático é você perceber que a coisa está em curso e o que você tem a fazer é se posicionar da forma mais estratégica para os interesses econômicos e ambientais do país."
Aprovada em novembro de 2001 pela 4ª Conferência Ministerial da OMC - Organização Mundial do Comércio, a nova rodada de liberalização multilateral imprimiu as questões estão sendo discutidas entre os mais de 140 membros da organização. Nos principais temas da DOHA estão os itens: Implementação; Agricultura; Serviços; Acesso a Mercados de Produtos Não Agrícolas; TRIPs (Acordo de Direitos de Comércio Relacionados à Propriedade Intelectual); Política de Competição; Investimentos; Transparência; Regras; Comércio e Meio- Ambiente; Entendimento de solução de disputas; Economias Pequenas; Comércio Eletrônico; Comércio, Dívida e Financiamento; Comércio e Transferência de Tecnologia; Cooperação Técnica e Capacitação; Países Menos Desenvolvidos.
Em entrevista concedida durante o evento promovido pela Petrobras "Economia e Sustentabilidade", que ocorreu nos dias 21 e 22 de novembro deste ano, em Porto Alegre, RS, a Coordenadora do Curso de Graduação em Economia da UNESP, Luciana Togeiro de Almeida, falou um pouco sobre algumas questões importantes, entre elas, a Agenda DOHA, o livre comércio e as polêmicas discussões que envolvem a integração entre interesses comerciais e ambientais.
A Agenda Doha
LT: A Agenda DOHA são as negociações comerciais no âmbito da OMC e tiveram início em novembro do ano passado(2001). Nessa Rodada DOHA tem uma pauta geral de negociações sobre temas que vão desde a implementação efetiva de acordos já firmados na rodada anterior que foi a Rodada Uruguai(Uruguay Round - 1986/1994). Havia uma queixa, principalmente de países em desenvolvimento, de que acordos da Rodada Uruguai não foram efetivamente implementados. Então tem um item na pauta da DOHA que é o de reforçar os mecanismos de implementação de acordos já firmados. E tem outros itens que são revisão do acordo de agricultura, de eliminação de subsídios - que interessa muito para o Brasil e que é o tema, pode-se dizer, mais destacado que o Itamaraty está dedicado. E tem a discussão ambiental, que aparece de forma explicitamente anunciada em (naqueles) três parágrafos. Mas o tema ambiente, você tem interface com ele em vários outros itens constantes da pauta.
A questão do meio ambiente a mercê dos interesses comerciais
LT: A discussão que normalmente se levanta é se a OMC é um fórum que deve ser privilegiado para impor compromissos ambientais. Se isso deve ser feito e obviamente a questão relacionada a isso é : interessa para países em desenvolvimento, para o Brasil, que o tema ambiental seja tratado no âmbito da OMC? E, caso ele seja tratado, quais as melhores formas de tratamento, que sejam compatíveis com interesses estratégicos de países em desenvolvimento?
A queixa do movimento ambientalista é essa. Que na OMC sempre falam mais alto os interesses econômicos e comerciais em detrimento da causa ambiental.
Falando de forma bem simplificada, o que eles dizem é que a OMC é um órgão dedicado a missão do livre comércio internacional e as experiências dos países que promoveram abertura comercial plena são experiências que evidenciam que piorou a situação ambiental. Os estudos empíricos que algumas ONGs - Organizações não- governamentais importantes encomendaram apresentam esse resultado. Que a abertura dos países não leva a solução dos problemas ambientais. O pensamento mais liberal diz: a abertura econômica gera eficiência econômica, ganhos de produtividade, ganhos de competitividade. Inclusive é uma abertura limpa, que leva a uma melhoria da situação ambiental. Mas tem um lado que é a crítica do movimento ambientalista.
Quando você fala em movimento ambientalista...
LT: Quando eu falo em movimento ambientalista, eu estou me referindo a algumas ONGs importantes. A intenção nem é citar nomes. Eu quero falar desse movimento mais organizado e mais agressivo. Então, essa leitura deles, com relação ao livre comércio, eu também assino embaixo. Realmente, já está bastante evidente que o livre comércio não é a solução econômica, ambiental ou muito menos social para os países. O aumento da interdependência das economias nacionais com a economia internacional, ele automaticamente não leva a ganhos econômicos, ambientais e sociais.
A idéia é a seguinte: como o livre comércio não garante a solução, então a gente tem que fazer com que se faça restrições ao livre comércio, restrições comerciais.
Então, o movimento ambientalista, esse que eu estou me referindo, em geral, acredita que a imposição de restrições comerciais é um caminho acertado para avançar os compromissos ambientais em países em desenvolvimento ou daqueles países avançados entre eles também.
Mas , pensando nessa relação norte- sul, seria dar o aval para que sejam aprovados na OMC restrições ao livre comércio internacional. Ou seja, permitir o uso de barreiras comerciais motivadas por questões ambientais, o que já ocorre, mas muitos ambientalistas ainda acham pouco, e se queixam que a OMC até agora foi muito reticente em dar apoio a causa ambiental e continua favorecendo muito mais interesses econômicos e comerciais, passando por cima da causa ambiental.
E o que você acha?
LT: Eu acho que não, eu acho que já avançou, aliás é compatível com a leitura que o Eric Neumayer - Diretor de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Escola de Economia de Londres fez (referindo-se a palestra ministrada pelo diretor no mesmo evento "Economia e Sustentabilidade", promovido em Porto Alegre em novembro/02), de que a OMC tem se inclinado cada vez mais a oferecer regras compatíveis com as demandas ambientais. "Environment friendly rules", ele usou essa expressão. Então, há uma tendência da OMC acomodar um pouco essa pressão do movimento ambientalista e de interesses de Governos de países avançados, para que suas regras sejam aprimoradas para as reivindicações ambientais. Já a leitura dos países em desenvolvimento é que essa vinculação é sempre problemática para nações em crescimento como o Brasil, é a leitura do Itamaraty. Qual é a posição diplomática brasileira frente a esta tendência de mesclar a negociação comercial com a ambiental? Eles sempre foram contrários a isso. É sempre em leitura de que isso é em detrimento dos interesses do país. Não nos interessa participar de negociações internacionais vinculando os dois termos. A minha leitura é que os dois termos vêm sendo integrados, a interação já está ocorrendo, essa agenda conjunta já está existindo.
Quando você fala em restrições comerciais, poderia exemplificar que tipo de restrições?
LT: Restrições comerciais com propósitos ambientais, de forma a permitir aos países o direito de colocar uma veto, uma proibição de importação de uma mercadoria exportada pelo Brasil ou por qualquer outra economia em desenvolvimento. Ou até entre eles, alegando a necessidade de uma adequação do processo produtivo daquela mercadoria, que aquela mercadoria não é produzida com padrão de emissão que já é o aprovado na legislação ambiental do país importador da mercadoria.
Então, você colocar uma medida comercial, uma restrição comercial alegando um problema ambiental, um problema ambiental relacionado ao processo produtivo e até relacionado ao produto final. Por exemplo, um produto final contendo, vamos supor, flúor. Se ele for consumido pelos meus consumidores internos isso vai gerar um problema de saúde pública, talvez gerar um dano ambiental quando for consumido internamente no país. Já tem vários casos de conflitos comerciais registrados, no GATS (Acordo Geral de Comércio e Serviços), na OMC, motivados por questões ambientais, em que o país colocou um veto comercial alegando inadequação ambiental da mercadoria. Então o país importador restringiu o acesso daquela mercadoria no seu mercado alegando problemas ambientais.
Pode ocorrer algum tipo de conflito entre as decisões que foram acertadas em Joannesburgo e as decisões da Agenda DOHA?
LT: Não é o caso porque praticamente não se acertou muita coisa em Joannesburgo, basicamente por isso. Então, do que foi acertado em Joannesburgo, talvez o compromisso com o reforço à questão da biodiversidade, que é um tema pendente para a OMC lidar e que significa a análise de adequação entre o acordo de Direito de Propriedade Intelectual e a Convenção de Diversidade Biológica. O tema é uma área de conflito potencial entre acordos ambientalistas tirados de Joannesburgo, ou reafirmados em Joannesburgo, e o TRIPs - Acordo sobre o Direito de Propriedade Intelectual -, que é um acordo que saiu da Rodada Uruguai, um acordo regulamentado e acompanhado pela OMC. O que o movimento ambientalista quer é que ele seja consistente com os compromissos da CDB- Convenção sobre Diversidade Biológica. Por exemplo, a CDB diz que os Estados de Nação tem soberania na exploração dos seus recursos biológicos e genéticos. Não pode haver, por exemplo, patenteamento por uma empresa estrangeira de uma planta, de um princípio ativo da biodiversidade local, a CDB diz. Primeiro, patenteamento de organismos vivos é uma coisa complicada, existem problemas aí de você estar patenteando organismos vivos; e o TRIPS, pelo texto dele, até permite patenteamento de organismos vivos. Na CDB, a exploração de recursos genéticos tem que dar direito de participação nos lucros para as comunidades nativas locais. Então, se tiver que patentear, que a patente seja em nome da comunidade local e não de uma empresa privada que vai se apropriar daquele conhecimento tradicional que os nativos já dominaram.
Uma última posição sobre a questão do livre comércio e a vinculação do comercial com o ambiental
LT: A idéia é a seguinte: a discussão vinculada comércio / meio ambiente, no plano das negociações internacionais, é polarizada. De um lado, pelo movimento ambientalista que denuncia que o livre comércio traz problemas ambientais e portanto tem que ser criticado. Por isso mesmo é que eles vão lá toda vez que tem conferência da OMC e fazem quase que um fórum paralelo, denunciando que a OMC é a grande vilã da globalização e das questões ambientais. Acontece que, ao mesmo tempo em que eles denunciam que a OMC é a vilã da história, eles querem que a OMC reforce as suas regras, os seus conjuntos de acordos, para incorporar a questão ambiental.
A minha posição é : você é contra os males da globalização e contra os organismos multilaterais que são identificados como os protagonistas, os que operacionalizam as tendências da globalização - a OMC seria um deles -; no entanto, ao mesmo tempo você vai lá e quer que a OMC imprima os seus poderes de disciplinar os seus países membros impondo regras com propósitos ambientais. Isso, à primeira vista, parece ser bom para a causa ambiental, mas pode trazer sérios prejuízos para o desenvolvimento sustentável.
Porquê?
LT: Porque você não pode mirar na causa exclusiva de ganhos ambientais, você tem que ter um enfoque de desenvolvimento sustentável (aliando o econômico, o social e o ambiental). O fato de você vincular esses compromissos no âmbito da OMC pode ser uma disciplina comercial mais deletéria do que favorável à construção do desenvolvimento sustentável de países em desenvolvimento. Então é um discurso meio sinuoso, meio perigoso. Você é contra, é contra mas o que você quer é que a OMC discipline isso para você , que é a minha discordância com o Eric Neumayer. O Eric acha que deve ter um "greening da OMC", isto é, um esverdeamento das negociações comerciais da OMC. Isso é o mesmo que dizer que a Organização Mundial de Comércio deve ampliar os seus poderes disciplinadores de causas ambientais, a OMC que essencialmente é um organismo voltado para disciplinar relações de comércio. Aí você está dizendo: Não, mas tem que disciplinar relações de comércio compatíveis com o meio ambiente. Isso significa estabelecer acordos mais restritivos, e na realidade o meio ambiente tem que ser interpretado amplamente. O que a gente tem que entender é que vai ter a contrapartida, por exemplo, das tecnologias para dar conta destes padrões que eles querem que a gente tenha, então tem que ser uma abordagem mais ampla. Essa percepção de que pode ser um risco para países em desenvolvimento é a que normalmente o Itamaraty tende a apresentar, que é sempre um risco, uma ameaça você vincular as duas questões.
A minha leitura, e de outros também, não é exclusiva minha, é que essa vinculação vem sendo colocada. Já foi colocada na Rodada Uruguai, está na Agenda Doha, está no cronograma de negociações da Alca, e temos que nos posicionar frente a isso. A vinculação entre comércio e meio ambiente e a postura tradicional que era a de recusar a negociação sobre esse tema não adianta mais. O Itamaraty tem que fazer um esforço de ouvir os vários outros segmentos da esfera política, da sociedade, ONGs, para levar uma agenda mais propositiva de negociação. Não basta chegar lá, entrar numa posição de confronto e se recusar. Não está sendo eficaz. Tem que ser pragmático. O reconhecimento inevitável do pragmático é você perceber que a coisa está em curso e o que você tem a fazer é se posicionar da forma mais estratégica para os interesses econômicos e ambientais do país.
Luciana Togeiro de Almeida é Coordenadora do Curso de Graduação em Economia da UNESP e Presidente da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECO - ECO).
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