Em uma entrevista concedida em novembro último para este boletim, o Secretário do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, Cláudio Langone, encerrando seus 4 anos de gestão estadual, expõe algumas de suas conclusões sobre a situação da problemática ambiental brasileira, os avanços, os desafios, e as perspectivas da sustentabilidade no novo governo.
A importância da variável ambiental incorporada na estratégia de desenvolvimento
Mesmo o Brasil tendo evoluído no que diz respeito a políticas ambientais, segundo Langone, a incorporação da variável ambiental nas políticas setoriais ainda deixa a desejar, representando, para o secretário, o primeiro grande desafio para o avanço do desenvolvimento sustentável.
- Agora é hora de avançar no sentido do desenvolvimento com sustentabilidade, porque eu acho que o movimento da Rio 92 trouxe um avanço da agenda ambiental, sobretudo no sentido de diminuição de impactos. O problema é que isso não significou a incorporação da variável ambiental no coração da estratégia de desenvolvimento mundial. E aí eu acho que o primeiro grande desafio em termos de sustentabilidade mundial está relacionado a distribuição da riqueza. Não é razoável pensar que a gente tem condições de aumentar de maneira significativa o volume de riquezas produzidas no mundo. O volume de riquezas produzidas no mundo hoje tem condições de sustentar a humanidade, de dar condições de sobrevivência e padrões razoáveis para o ser humano. O que nós vemos é uma desigualdade que aumentou de 1992 para cá; na relação entre os países ricos e pobres e nas relações internas dos países.
- A incorporação da variável ambiental na estratégia de desenvolvimento do país, sobretudo na área de desenvolvimento econômico e na área de infraestrutura, é o grande passo que o país tem que dar. Para fazer isso, você precisa fortalecer o setor ambiental dentro do governo, porque o setor ambiental é quem alimenta essa estratégia. Acontece que o Brasil avançou bastante em termos de políticas ambientais, mas o nível de incorporação da variável ambiental nas políticas setoriais é muito baixo. O setor ambiental, tradicionalmente no Brasil, não se preparou para ter uma relação mais propositiva neste sentido. Ele sabe controlar poluição de indústria, mas não tem capacidade para, no desenho de uma estratégia de desenvolvimento industrial, sentar à mesa com os setores desenvolvimentistas e dizer: Olha, vocês precisam incorporar tais e tais elementos no desenho da estratégia da política industrial brasileira, ou da política energética. Eu acho que esse é o grande salto que nós temos que dar, mas não tenho ilusões de que isso seja um processo que caia do céu, ou que se dê espontaneamente. Eu acho que precisa ter uma diretriz política do Governo, e precisa haver, dentro do Governo, uma estrutura que seja alimentadora desse processo, que, para mim, é o setor ambiental.
A redistribuição da riqueza e os diferentes efeitos da desigualdade
- Não há como você combater a pobreza sem combater a riqueza. Isso significa que é preciso criar mecanismos internacionais de redistribuição da riqueza. Não tem outro jeito. Porque pensar em ampliar o volume de produção de riquezas do mundo significa ampliar ainda mais o comprometimento da capacidade de suporte do planeta. Isso está intimamente ligado à questão da mudança dos padrões. A idéia é buscar padrões de produção e consumo mais racionais, só que isso não é uma discussão abstrata. O fracasso de Joannesburgo não é um fracasso teórico e a falta de avanço na implementação de alguns acordos como o acordo de mudanças climáticas - e seu mecanismo direto de implementação que é o Protocolo de Quioto -, tem reflexos muito fortes na degradação ambiental e nos distintos grupos sociais, que sofrem de maneira diferenciada os efeitos dessa degradação. Não há dúvida de que os grupos minoritários são mais atingidos pela destruição ambiental. Um bom exemplo está no acesso a água. E aí eu penso que um tema que apareceu muito forte em Joannesburgo que foi o da justiça ambiental - a necessidade de democratização do acesso de todas as pessoas aos bens ambientais -, é um elemento muito importante.
- Você hoje tem relações profundamente desiguais nos diferentes grupos sociais em relação aos bens ambientais, ao uso fruto dos bens ambientais. E a questão da água é o tema que chama mais atenção, porque, se você considerar que os bens ambientais são bens públicos, que todos têm direitos iguais a eles você vai ver que, do ponto-de-vista real, nós precisamos avançar muito.
Os mecanismos de legitimação e a relevância do Estado
- As leis são um reflexo da sociedade, porque são representantes da sociedade que as fazem. Eu acho que é fundamental que se tenha mecanismos de legitimação das leis. O processo de discussão de todos os segmentos da sociedade, prévio a elaboração de leis, é essencial para sua implementação depois. Acontece que o Brasil teve um problema na questão ambiental que é o seguinte: nós tivemos, no último período, o aprofundamento de leis fortes que exigem um Estado forte, mas tivemos a execução de políticas de diminuição do tamanho do Estado. Então, lei de Estado máximo para política de Estado mínimo cria uma situação de frustração e as leis ficam leis de gaveta.
- É preciso pensar numa articulação média, que possa dar mais legitimidade para as normativas legais a partir de grandes discussões e grandes consensos, concebendo a idéia de que as leis são mutáveis porque elas são um reflexo de cada sociedade em cada contexto histórico. O que é aceitável hoje na área de meio ambiente pode não ser aceitável daqui há dez anos. Qual é a tolerância que nós temos com relação ao preço a pagar pelo desenvolvimento? A tolerância tem se mostrado cada vez menor na política brasileira, e eu penso que isso é muito bom. Mas eu também acho que houve uma recusa sistemática do último governo em assumir a função de coordenador de um sistema nacional de meio ambiente, onde Estados e municípios têm um protagonismo muito importante. Você pensar hoje em políticas ambientais no Brasil sem os Estados, significa que 70% da execução das políticas está fora do escopo. Porque os Estados atualmente respondem por 70% da execução das políticas. E eu penso que o Ministério do Meio Ambiente e o Governo Federal tem que se preocupar com a execução das políticas da sua competência, isso é muito importante, mas mais importante do que isso é que ele tem que chamar para si - e ele se recusou sistematicamente a isso no último período -, a coordenação do sistema nacional, pois uma grande parte das políticas que podem ser desenvolvidas em nível nacional requerem uma liderança no Governo Federal, do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama, enfim. Nós temos no momento uma fragmentação na execução das políticas que não é aceitável, seja pelo choque entre o Governo Federal e os Estados, que ainda nós temos áreas de conflitos; ou seja mesmo na relação Estados / municípios, onde nós temos muitas disparidades. É pretendido que no novo Governo se assuma um protagonismo de liderança em torno da organização e do resgate efetivo dessa idéia de um sistema.
Um exemplo
- As resoluções do CONAMA que envolvem o setor industrial, que são as resoluções pós- consumo. Nós tivemos quatro ou cinco resoluções pós- consumo de 1999 para cá; pneus, pilhas e baterias, lâmpadas fluorescentes, embalagens de agrotóxicos usadas. Não tem como você implementar uma resolução dessas sem ativar os mecanismos do SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente. Por exemplo, pilhas e baterias: você tem uma ou duas fábricas de pilhas e baterias no país que estão localizadas num Estado que exporta para os demais. A legislação pós- consumo responsabiliza o fabricante e os distribuidores. No entanto, o Estado só consegue chegar até o distribuidor. Para ele responsabilizar o fabricante ele tem que ativar o órgão federal que é o Ibama, que pode ir lá no outro Estado e obrigar o fabricante que faça o recolhimento e a reciclagem da pilha e bateria. Então nós temos uma situação de não implementação da maior parte das resoluções do CONAMA aprovadas de 1999 para cá porque o Governo Federal não assume o papel de articulação disso. Não basta aprovar uma resolução do CONAMA, você tem que depois da aprovação discutir os mecanismos de implementação. Não é uma relação unilateral, porque no processo de negociação que levou uma resolução dessa os setores empresariais estiveram envolvidos, então na implementação eles tem que estarem envolvidos. A não - implementação de uma resolução dessa é um desgaste para todo mundo, inclusive para os empreendedores, porque eles participaram do processo negocial. Então eu acho que isso gera uma grande frustração como gerou na questão da destinação das pilhas e baterias, onde se criou para a sociedade uma expectativa de que o Brasil a partir daí iria ter uma destinação adequada, que os fabricantes iriam recolher as pilhas e baterias, e hoje as pessoas não sabem o que fazer com esse material.
Mais responsabilidade aos municípios
- Na minha opinião, o grande passo na estruturação do sistema de meio ambiente no Brasil é em direção aos municípios. É imperativo que os municípios assumam mais responsabilidade nesta área, sobretudo sobre os pequenos e médios empreendimentos, porque se você somar a capacidade institucional de União, Estados e Municípios na área ambiental no Brasil hoje, ela ainda é insuficiente para atender a demanda. Então não tem nenhum sentido para que haja sombreamento, concorrência de competências num sistema desses. Nós ainda temos no Brasil o Ibama fiscalizando poda de arborização urbana em alguns lugares, o que eu não consideraria aceitável que o Estado fizesse, quanto mais o Governo Federal fazer. Eu acredito que essa definição clara de competências é um elemento fundamental para a gente avançar. E, objetivamente, se não tivermos capacidade de avançar, isso irá frustrar a sociedade. Porque a sociedade cobra que o governo implemente as políticas, ela não quer saber se é o governo da União, do Estado ou do município, ela quer resolver o problema.
A valorização excessiva de um único mecanismo e a necessidade de focalizar o todo
- Está na hora de mudarmos um pouco a matriz, a política ambiental brasileira, porque o setor ambiental no Brasil se desenvolveu com um foco urbano- industrial, e muito centrado no licenciamento ambiental de empreendimento a empreendimento, de maneira isolada. Eu acho que deveríamos dar um salto no sentido de equilibrar mais as funções de fiscalização e de regulação pontual, através do licenciamento com maior capacidade de gestão e planejamento estratégico, olhando mais para um escala regional e trabalhando uma agenda mais propositiva, porque o setor ambiental público no Brasil ainda trabalha sobre uma agenda excessivamente reativa, o que significa que ela é respostista. Você trabalha só em uma lógica de usar os instrumentos, principalmente o licenciamento. E como a questão ambiental não está incorporada nos grandes projetos de desenvolvimento econômico e infraestrutura, o setor ambiental acaba sendo um ponto de trava que garante que o projeto incorpore a questão ambiental na fase do licenciamento, só que isso gera muito conflito. O licenciamento ambiental não pode ser absolutizado como único instrumento de controle público.
Um exemplo
- A questão das hidrelétricas. Porquê continuamos avaliando isoladamente cada hidrelétrica numa mesma bacia hidrográfica, se nós temos bacias hidrográficas que têm inventários que apontam que você pode ter 50, 60 hidrelétricas. E aí, se você não olhar para o global, a tomada de decisão pontual pode ser péssima. Ela pode estabelecer uma dinâmica na qual quem chega primeiro vai instalar e quem chega depois não vai instalar, porque objetivamente não há possibilidade. Os elementos que têm que ser olhados não são só os elementos de volume de água para gerar turbina. Você tem que olhar biodiversidade, cobertura florestal, lazer, abastecimento, turismo, etc.. É preciso ir além dessa questão de uma super estimação do licenciamento ambiental, tentar integrar mais os instrumentos de gestão - sobretudo aqueles que são os instrumentos tradicionais de políticas ambientais e de recursos hídricos. A integração entre o sistema de gestão de águas e o sistema ambiental no Brasil é ainda muito incipiente, e é fundamental.
Os Estados e o Desenvolvimento Sustentável
- O Brasil é um dos países federativos com maior autonomia dos entes federativos do mundo, na escala nacional e subnacional , que é a escala dos governos estaduais. A dimensão local e a dimensão subnacional, ela não está representada formalmente nas negociações internacionais, mas cada vez mais ela tem muita responsabilidade na implementação de políticas. Então, por exemplo, em Joannesburgo nós fizemos um movimento para a criação de uma rede mundial de governos regionais em torno do desenvolvimento sustentável, para reivindicar um espaço nas Nações Unidas específico para esse nível de governo, que é subnacional, e que não é dos governos nacionais. Eu penso que, na escala local, o grande desafio para a sustentabilidade é a relação entre política ambiental e planejamento urbano, uso do solo, planejamento territorial. Na escala estadual e mais ainda na escala nacional o grande desafio é a interface com o desenvolvimento econômico e a infraestrutura.
O exemplo do Rio Grande do Sul
- Eu acho que no RS a experiência que tivemos no atual governo mostrou que é possível avançar progressivamente no sentido de uma agenda mais propositiva que irradie o tema ambiental por todas as pastas de governo. Nos tivemos várias interfaces muito importantes em áreas que tradicionalmente são áreas de conflito, como a área de energia, por exemplo, onde a gente fez o Atlas Eólico, a gente fez as centrais de energia da biomassa, na agricultura - a Agroecologia -, enfim, várias interfaces que não são de execução direta do setor ambiental, mas que tem muita incidência nas macropolíticas. Isso faz parte desse conceito que eu te falei, que a gente colocou como desafio que o setor ambiental tivesse um outro tipo de postura mais propositiva, eu não tenho a menor dúvida de dizer que, senão fosse a criação da SEMA – Secretaria Estadual de Meio Ambiente e nós termos assumido esse papel protagônico dentro do governo, nós teríamos avançado muito menos nessas áreas. Então nós tivemos uma diminuição grande dos conflitos internos, entre meio ambiente e desenvolvimento econômico no RS e, por incrível que possa parecer, o nível de conflito no setor ambiental aqui no Estado com a sociedade também diminuiu muito, principalmente com os segmentos empresariais. Se você for analisar, trata-se de um governo mais rigoroso e com menos conflito, porque é um governo de mais diálogo.
O avanço da sociedade civil com relação ao problema ambiental
- O que para mim é positivo, é que no último período nós tivemos um crescimento significativo da consciência média da população em relação as questões ambientais; e não apenas isso, nós tivemos uma diversificação dos atores. Um tema que estava restrito às ONGs e que hoje mobiliza todos os segmentos da sociedade no Brasil. E essa mobilização tem levado as pessoas a quererem desenvolver ações práticas para melhorar o meio ambiente e isso é muito bom. O Governo deve fazer parcerias com a sociedade e dar os elementos para que isso ocorra.
A alienação do Governo Federal com relação aos problemas regionais e o novo Governo Lula
- Eu acho que o Governo do Lula vai ter, em todas as áreas, mas na ambiental principalmente, uma grande diferença nisso porque nós temos uma experiência muito grande na gestão municipal e na gestão nos Estados, e isso nos dá uma outra dimensão, tendo passado por esse tipo de gestão. Porque, de fato, a tecnocracia de Brasília tem uma visão de mundo que muitas vezes não bate com a realidade. Várias instituições independentes fizeram uma avaliação dos programas ambientais dos candidatos à presidência. De longe o programa que o Presidente Lula apresentou é o mais completo. Ele reflete a experiência que temos nesta área, uma construção já de muito tempo, que é um acúmulo na gestão pública e é um acúmulo também na sociedade civil, em que as principais lideranças ambientalistas no Brasil estão articuladas dentro do PT. E eu acho que é esse acúmulo que nos fez chegar a um programa que é bastante razoável. Não é um programa acabado no detalhe porque optamos por não ir tanto no detalhe, mas ele não deixa nenhuma grande questão de fora em termos ambientais.
Cláudio Langone é Secretário Estadual do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul e Presidente da Abema (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente).
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