Desde os seus primórdios, imaginou-se a bioética como uma fonte de normas, regras gerais e princípios, cujo objetivo principal seria o de disciplinar eticamente o trabalho de investigação científica e de aplicação dos seus resultados, protegendo a biologia da ameaça de deshumanização. A própria comunidade científica despertou para essa necessidade, fazendo com que os princípios da bioética constituíssem, nas suas primeiras formulações, uma espécie de código de ética profissional para cientistas e pesquisadores. A partir do início da década dos cinqüenta, a rapidez e sofisticação das novas descobertas biológicas, suscitaram indagações morais, que procuraram resposta na formulação de princípios éticos, que em sua origem, pretendiam regular a pesquisa e a engenharia genéticas, consideradas, em muitos aspectos, como uma ameaça à inviolabilidade da pessoa humana. Mas os princípios pretendiam, também, exercer o papel de fonte de obrigações e direitos morais, constituindo-se em principia (Engelhardt, 1996: 103), que expressavam raízes da vida moral, sendo suas determinações obrigatórias por si mesmas.
Os avanços do conhecimento científico, no contexto de desconhecimento objetivo sobre os resultados da aplicação das tecnologias e, também, de uma certa paranóia nascida, mais do culto da ficção científica do que propriamente da ciência, provocaram uma proliferação de regras bioéticas ou deontológicas de caráter geral, cuja fundamentação encontram-se nos princípios da bioética.. Os antecedentes normativos do biodireito, mais éticos do que jurídicos, representaram sòmente a primeira resposta para que pudesse ser preenchido o vazio normativo, ocasionado pela incapacidade da ordem jurídica vigente de lidar com as novas descobertas e suas aplicações, consideradas como ameaças, quando não reais, imaginadas, para a sobrevivência da humanidade. O vazio normativo tornou-se mais evidente com a insuficiência da deontologia médica clássica em lidar com as novas descobertas e as exigências sociais de transparência e publicidade na pesquisa e na prática médica, fazendo com que as questões morais suscitadas procurassem socorrer-se de princípios, que, teoricamente, deveriam pautar eticamente o desenvolvimento da investigação científica e suas aplicações práticas. Os princípios em sua generalidade, no entanto, não corresponderam às expectativas de regulação e, por essa razão, legislou-se sobre a pesquisa e as tecnologias de forma impulsiva, procurando-se resolver situações pontuais e não estabelecer normas jurídicas gerais.Os fantasmas que rondaram as descobertas da biologia contemporânea tinham, entretanto, uma certa materialidade, pois o progresso biológico trouxe consigo a lembrança dos experimentos nazistas, o que justificou a proclamação das normas do Código de Nuremberg, em 1947. Essa foi a primeira tentativa de distinguir entre pesquisas clínicas e não clínicas, quando se recomendou a formação de comitês destinados a regular o processo de obtenção do consentimento e do tipo de informação dada aos doentes, que fossem objeto das pesquisas. O movimento dos comitês de ética expandiu-se, principalmente, em hospitais universitários, sendo formado, originalmente, por médicos; em pouco tempo, surgiram os comitês nacionais de bioética, que a partir dos anos sessenta foram criados nos Estado Unidos, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Austrália e em outros países, com a função de atuarem como instâncias nacionais para o contrôle do desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia biológicas. Normas internacionais terminaram por consagrar a temática da bioética como tema planetário, procurando envolver em suas determinações inclusive aqueles países onde não se tinham ainda estabelecidos os comitês nacionais de bioética.
Os chamados princípios da bioética foram formulados, pela primeira vez, em 1978, quando a "Comissão norte-americana para a proteção da pessoa humana na pesquisa biomédica e comportamental", apresentou no final dos seus trabalhos o chamado Relatório Belmont; este texto respondia àquelas exigências, acima referidas, vindas da comunidade científica e da sociedade no sentido de que se fixassem princípios éticos a serem obedecidos no desenvolvimento das pesquisas e que deveriam ser considerados quando da aplicação de recursos públicos nessas atividades científicas. O Relatório Belmont estabeleceu os três princípios fundamentais da bioética, em torno dos quais toda a evolução posterior dessa nova área do conhecimento filosófico iria desenvolver-se: o princípio da beneficência, o princípio da autonomia e o princípio da justiça, chamado por alguns autores de princípio da equidade (Lepargneur, 1996: 133). As normas biojurídicas, promulgadas, desde então, em países pioneiros na legislação do biodireito, como a Grã-Bretanha, Austrália e França, tiveram como referencial último esses princípios estabelecidos pelo Relatório Belmont. O exame desses princípios permite que se tenha uma idéia, no entanto, de suas limitações como princípios fundadores de uma ética e de um biodireito na sociedade pluralista e democrática.
O princípio da beneficência deita suas raízes no reconhecimento do valor moral do outro, considerando-se que maximizar o bem do outro, supõe diminuir o mal; o princípio da autonomia estabelece a ligação com o valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representando a afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser resguardada; o princípio da justiça ou da equidade estabelece, por fim, que a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em vista o corpo-objeto do agente moral, a determinação estrita do texto legal. Verificamos que os três princípios correspondem a momentos e perspectivas subsequentes na evolução da bioética, e em conseqüência do biodireito: o momento e a perspectiva do médico em relação ao paciente; o momento e a perspectiva do paciente que se autonomiza em relação à vontade do médico; e, finalmente, o momento e a perspectiva da saúde do indivíduo na sua dimensão política e social.
Alguns problemas de ordem racional surgem, entretanto, na análise da formulação e aplicação desses princípios. O estabelecimento de princípios, expressando raízes da vida moral, como quer Engelhardt (1996: 103), significa que irão formular uma determinação que, em última análise, torna-se canônica - pois quem irá definir em cada caso qual o "verdadeiro" significado de cada um deles -, e com isto terminam por negar o princípio racional básico de que as leis morais resultariam de uma ampla argumentação pública entre pessoas autônomas. A aplicação dos princípios, por sua vez, leva à situações conflitantes, entre si, a partir da constatação de que tomados, separadamente, cada um deles pode ser considerado como superior ao outro. Logo, logicamente, a sua aplicação não pode ser feita de maneira conjunta e não diferenciada, pois implicaria num processo de paralisação mútua do processo decisório.
A própria origem de cada um dos princípios da bioética mostra, em sua formulação restrita, que não atendem às demandas da ordem normativa, moral e jurídica de uma sociedade pluralista e democrática. As condições mínimas para a construção de qualquer sistema normativo - i.e., ordem e unidade - supõem a coexistência de princípios, que sejam complementares e não, como é o caso dos princípios da bioética, princípios que partem de pressupostos e cujos objetivos são mutuamente excludentes. O princípio da beneficência tem suas origens na mais antiga tradição da medicina ocidental, na qual o médico deve visar antes de tudo o bem do paciente - definido pelas luzes da ciência , sendo que o principal desses bens é a vida; logo, o compromisso maior do médico é o de envidar todos os esforços e empregar todos os meios técnicos tornados viáveis pela ciência e pela tecnologia para manter vivo o paciente, mesmo contra a vontade deste último. O princípio da autonomia, por sua vez, surge dentro da tradição liberal do pensamento político e jurídico, que por sua vez deita suas raízes no pensamento kantiano; o indivíduo, dentro da concepção liberal, é um sujeito de direitos, que garantem o exercício de sua autonomia, sendo que como paciente deve, também, ter aqueles direitos, que o situam como pessoa e membro de uma comunidade, advindo dessa constatação, o direito do paciente decidir, como sujeito de direito, na relação médico-paciente. O princípio da justiça recebe a sua primeira formulação no bojo da crise do estado liberal clássico, quando o processo de democratização dessa forma de organização política passa a considerar a sociedade e o Estado como tendo a obrigação de garantir a todos os cidadãos o direito à saúde; essa obrigação torna o Estado e a sociedade agentes e responsáveis na promoção da saúde do indivíduo, achando-se estabelecida na Constituição brasileira de 1998, nos seguintes termos: "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" ( art. 196). Torna-se, assim, evidente que a aplicação literal dos três princípios da bioética de modo mecânico, sem que sejam discutidos os seus fundamentos éticos, podem tornar-se conflitivos, contraditórios e auto-excludentes.Em cada princípio, privilegia-se um elemento diferente, sendo que a prática deformada de cada um desses princípios provoca situações sociais injustas. Assim, o princípio da beneficência pode facilmente transmutar-se em paternalismo médico, tendo sido contra esta característica da prática médica dos últimos cem anos, que se manifestou o movimento social dos anos sessenta. O princípio da autonomia, por sua vez, pode instaurar o reino da anarquia nas relações entre médico e paciente, isto acontecendo, quando a liberdade individual passa a representar o escudo atrás do qual o paciente impede que o médico exerça a sua função. O princípio da justiça, por fim, corre o risco de transformar-se na sua própria caricatura nas mãos da burocracia estatal, sob a forma de paternalismo e clientelismo político. O que se encontra por detrás da aplicação mecânica desses princípios, como se fosse possível a sua aplicação conjunta, é a tentativa de justificar-se a hegemonia de uma das três dimensões da saúde na sociedade contemporânea, o paciente, o médico e a sociedade. Os três princípios sòmente adquirem sentido lógico se forem considerados como referentes a cada um dos agentes envolvidos: a autonomia, referida ao indivíduo, a beneficência ao médico e a justiça à sociedade e ao Estado. A aplicação isolada de cada um desses princípios, no entanto, terminará por consagrar as situações sociais injustas a que fizemos referência. Torna-se, então, necessário procurar um modelo que não permita a hegemonia de um princípio sobre os dois outros, mas que assegure a justificação, a integração e a interpretação dos três princípios. Em outras palavras, como fazer com que a autonomia seja preservada, a solidariedade garantida e a justiça promovida.
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